"O homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto
de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas".
(William Shakespeare)
A música está presente em todas as culturas desde a pré-história e parece ser uma manifestação humana natural e inescapável. Muitos de nós consideramos a música um dos maiores prazeres existentes, senão o maior - e mais que isso, imaginamos que esse deleite é compartilhado por todas as pessoas, sem exceção; afinal, uma bela canção tem o poder miraculoso de transmitir sensações, emoções e estados de espíritos muito bons os mais variados (até mesmo a melancolia e as lágrimas ao ouvir certas melodias podem ser bastante prazerosas, ou ao menos catárticas.)
De fato, uma boa parte de nós não conseguimos sequer imaginar a vida sem música, ela nos é tão fundamental como respirar. Música é uma unanimidade então, uma paixão de todos, certo? CALMA LÁ, PENSE DUAS VEZES. Para espanto de muitos, até de cientistas, pode parecer estranho e inconcebível, mas existem pessoas que são completamente indiferentes mesmo à mais maravilhosa peça musical, outras que chegam mesmo a se irritar profundamente com ela, com qualquer conjunto de notas e acordes organizados harmonicamente em uma música, por mais bela que seja.
Isso é resultado de uma constatação de estudiosos, à qual se seguiu o resultado de uma extensa pesquisa, que foi publicado na revista Current Biology. Os cientistas da Universidade de Barcelona - Espanha, coordenados por Josep Marco-Pallarés, nomearam a incapacidade de apreciar a música como "anedonia musical específica" e descreveram a existência dessas pessoas que não sentem prazer musical, embora possam ser perfeitamente sensíveis a outros estímulos e interessarem-se por outras coisas.
À parte aquelas apenas temporariamente insensíveis ou pouco estimuladas pela música, como por exemplo em algumas depressões, ao menos até o momento evitou-se classificar a "anedonia musical" como doença ou disfunção e limitou-se a defini-la como uma mera característica pessoal, própria de indivíduos nos quais a melodia não libera os hormônios do prazer. No entanto, em alguns estudos iniciais ainda incipientes, verificou-se marcadamente uma baixa taxa de afetividade e empatia nas pessoas estudadas, que parece apontar fortemente para a existência de traços psicopáticos e sociopáticos.
A anedonia musical específica não é tão comum, nem exatamente uma raridade. Num trabalho anterior, a equipe de Josep Marco-Pallarés testou 1.500 pessoas. Cerca de 5,5% apresentaram baixa sensibilidade ao prazer derivado da música, embora sentissem motivação normal em relação a outros estímulos (comida, sexo, dinheiro, etc.) Intrigado com os primeiros resultados, Josep decidiu continuar a investigação.
No novo estudo, demonstrou que essas pessoas não têm nenhuma dificuldade de percepção musical; são capazes de reconhecer corretamente as emoções proporcionadas pela música, mas apenas num nível racional, portanto são emocionalmente indiferentes a ela. Na pesquisa, a descarga de hormônios no cérebro e outros parâmetros fisiológicos (como frequência cardíaca e condutividade elétrica da pele) foram avaliados em dois momentos: primeiro quando os voluntários participaram de um jogo em que podiam ganhar ou perder dinheiro de verdade; depois, no momento em que ouviam música.
Todos os voluntários reagiram fisiologicamente ao teste do dinheiro, mas uma parcela não reagiu ao estímulo musical. Não há Beethoven, Pink Floyd, Maria Callas, Cartola ou Lepo Lepo capaz de mexer com esses indivíduos. Além de curiosa, instigante e algo assustadora, a descoberta tem valor científico em diversas áreas.
"Alguns exemplos: a identificação dessas pessoas pode ser importante para entender as bases neurais da música - ou seja, entender como um conjunto de notas é traduzido em emoções -; tem também grande interesse nas áreas jurídico/criminal e da psicologia/psiquiatria, como um possível auxiliar na determinação da complexa e ainda misteriosa psicopatia, eventualmente para encontrar formas de curá-la ou amenizá-la. As possibilidades são ilimitadas", diz Josep.
"Numa outra análise, o fato de existir gente que não gosta de música, mas sente prazer com outros estímulos, indica que temos diferentes formas de acessar o sistema de recompensa do cérebro", afirma ele. "Alguns estímulos podem ser mais eficazes que outros". O sistema de recompensa do cérebro é aquele que produz bem-estar e euforia quando estimulado. É por isso que sentimos desejo de repetir uma sensação prazerosa. Entender o papel dos diferentes estímulos pode contribuir para as pesquisas sobre dependência química e/ou psicológica, sobre transtornos do humor, etc., e estudar terapêuticas para curá-los.
Teste de Grau de Interesse Musical
Você gostaria de saber seu grau de interesse musical? No link abaixo há um teste criado pela Universidade de Barcelona. O resultado sai na hora, assim que você clica em "Send" ("enviar"). Os valores-base são 40 e 60: entre 40 e 60, o interesse é normal; abaixo de 40 é baixo e acima de 60 é alto. (Obs.: o teste está em inglês. Embora seja pequeno e bastante simples de entender, quem desejar uma tradução, favor contactar lyahkafrun@gmail.com.)
A canção abaixo, "Rivers Flow in You", foi composta e executada pelo pianista/compositor japonês Yiruma. Pessoas com grau normal ou alto de prazer musical deverão apreciá-la muito (mas evidente que deve-se considerar também o gosto pessoal, muito variável.)
Rivers Flow In You - Yiruma